Nelson Garrone e a mão vil que afaga gays

Jornalista parece querer ajudar homossexuais, mas, ao fim, torna-se agente do próprio mal que ele denuncia

Publicado em 06/12/2021
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Para Garrone, gays são tão inertes que nem protagonismo na luta por direitos eles têm. E ele está errado

Por Welton Trindade

Nunca ouvi falar de drag queen com um nome tal como Augustynna Angels. Que falta faz! Precisamos de uma!

Sua peruca será de Mortícia. Seu ombro, poleiro de um corvo. Sua maquiagem, de morte. De seus lábios de batom Mary Kay negro, sairá o aviso-lamento: "Apedreja essa mão vil que te afaga!". 

Que antes do Rajadão na pista, gays se entreolhem, botem a mão na boca por pavor e pensem, mesmo que  estroboscopicamente: "Se mamis falou, melhor ficar atento".

Enquanto esse anjo caído em purpurina cinza não surge, falemos de exemplo do que ela quereria nos alertar. 

O vídeo do jornalista Nelson Garrone intitulado "O que negros e mulheres ensinam aos gays" (sofra abaixo) é amostra desse fenômeno, o qual precisa ser combatido antes que ganhe variantes. 

Sob o nobilíssimo pretenso objetivo de cuidar da saúde mental e do sentido de comunidade de gays, o produtor de conteúdo mostra diversos números de ainda mais diversas pesquisas que desenham cenário só menos ruim que preocupante. 

Gays com taxas mais altas de suicídios que héteros, ansiedade maior do que a da população geral, menos amigos próximos que héteros e lésbicas, forte incidência de distúrbios por conta de pressão estética... 

Ele resume: "O nome gay é [significa] feliz, mas acho que isso não condiz com a realidade". 

Poder-se-ia gastar muitos toques para tratar diretamente do que os estudos demonstram, mas os erros cometidos pelo jornalista no vídeo são tantos e tão pontiagudos que apontá-los e devidamente lixá-los, em si, já será de grande ajuda para dirimir aquele cenário. 

A premissa titular do vídeo já é a primeira escorregada. Tratar negros e mulheres como coletivos 1) homogêneos e 2) idealizados. 

Seria uma tristeza menor apontar o dedo apenas para gays e localizar neles todos os problemas do mundo se essa fosse a verdade! Mas não é!

As relações sociais e identitárias são atravessadas por muitas questões e, justamente por isso, é pernicioso comportar-se tal como uma mãe carrasca que fala para o filho ser tão estudioso e educado como o Tales-filho-da-Solange-do-408. E fazer um vídeo com esse título para o grupo da família!  

Fácil seria listar depoimentos de mulheres famosas sobre a decepção que têm por ser de outras mulheres a autoria de boa parte do "hate" que sofrem.

Entretanto, mais fácil ainda é ver o comentário mais curtido no próprio vídeo: "Não são todas as mulheres que se unem. Há muita inveja e competição". 

Logo abaixo, uma mãe explica que o filho surdo vive consequências da, nas palavras dela, "guerra" entre pessoas com deficiência auditiva que usam aparelho para ouvir e as que se expressam na língua dos sinais. 

No Twitter, há pouco, causou assombro o fato de um homem trans cobrar de outros homens trans para dar informações sobre cirurgias para a adequação do corpo. Sim, preocupação com os iguais com p de Pix! 

Quanto a negros... Sugestão de dar leve estudada que seja, por exemplo, na relação entre o evangelismo cristão negro e as religiões de matriz africana. 

A postura de "a grama identitária do vizinho é mais verde" do jornalista é conjugada com a fixa desvalorização do que gays produzem. 

Cronometre, você, lá no vídeo: veja quanto tempo ele gasta falando do tapete marroquino desbotado e do cachorro.

A outra parte, que é contar quantos milionésimos de segundo ele usa para citar coisas positivas que homossexuais realizaram ou realizam, é fácil: zero! 

Relato de Lulu Santos sobre o quanto é grato por ter recebido apoio depois de assumir namorar um homem? Agradecimentos endereçados ao senador Fabiano Contarato por ser um político abertamente homossexual e que luta pelos filhos?

Carinho que o jornalista Marcelo Cosme conta ter tido após, há poucos meses, falar que é gay e por, há poucos dias, ter lançado um livro para combater a homofobia? A força que tem Pabllo Vittar junto a jovens gays que vêem nele um exemplo de que é possível ser feliz sendo quem se é? As paradas do orgulho serem as maiores manifestações cívicas de rua da história do Brasil?

Para Garrone, isso não existe! Na embalagem, ele diz querer ajudar, mas, no conteúdo, o jornalista é só mais um agente do próprio mal que ele denuncia! Que virtude há em avisar que a casa está em chamas se você, ao mesmo tempo, passa o trinco na porta?

O vídeo arremata o merecimento de ser qualificado como, no mínimo, tristemente equivocado até quando o acerto parecia que viria à luz. 

Ao dizer que uma das soluções para os problemas psicológicos e sociais que gays enfrentam é estudar mais a própria história, o que Garrone faz? Apaga-a! 

Ele não consegue citar nenhum lutador gay pelos direitos. Seus unicórnios não carregam homossexuais aguerridos tais como Harvey Milk, Luiz Mott, Paulo Iotti, João Mascarenhas, Toni Reis, Ney Matogrosso, Paulo Gustavo, Jean Wyllys, João Silvério Trevisan, Karl Heinrich Ulrichs... 

Para o jornalista, gays são tão inertes que nem protagonismo e pioneirismo na luta pela própria vida e cidadania eles têm. 

A má notícia - para Garrone - é que quem seguir o caminho indicado por ele mesmo, consumir livros e se informar vai constatar que têm sim! E muito! Até no caminho pela cidadania dos outros segmentos do vale! 

Quem ler vai saber, por exemplo, que homens eram linha de frente do movimento gay/homossexual nos anos 1970 no Brasil. Lésbicas e travestis só ganharam autonomia nos anos 1990 (livro Na Trilha do Arco-íris, de Júlio Simões e Regina Facchini, página 15). 

Esses que lêem não estarão nunca no grupo de gay capacho que respira o dogma da Revolta de Stonewall como início da luta pelos direitos gays - não é - e que propaga a fake history que Marsha P Johnson a liderou (sendo que ela mesma afirma que não). Eles conhecem o que foi, por exemplo, The Mattachine Society, dos anos 1950! E saber antes de falar é fundamental! 

A outra saída também apontada corretamente pelo jornalista é a importância de superar o bullying homofóbico, o qual deixa marcas em gays para o resto da vida e pode levar a comportamentos autodestrutivos e errantes. 

Mas nem aí a palma vem! 

Em sua argumentação, ele trata como objetivo algo que já é real. Não é para lutar por uma norma nacional que obrigue escolas a combater o acosso contra estudantes gays. Ela já existe! Desde 2015! 

As luzes pálidas focam o centro do palco-túmulo, seu corpo emborca-se... Mas antes de sair para o infinito de trevas youtuberísticas, Augustynna Angels faz cruz com os dedos magros e ecoa pela pista suas últimas palavras: "Na era das fake news, tome cuidado também com as fake consolations."


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